A ATIPICIDADE DAS MEDIDAS EXECUTIVAS NAS EXECUÇÕES POR QUANTIA CERTA: CONSTITUCIONALIDADE E LIMITES

A ATIPICIDADE DAS MEDIDAS EXECUTIVAS NAS EXECUÇÕES POR QUANTIA CERTA: CONSTITUCIONALIDADE E LIMITES

Por Mozart Borba*

No presente artigo, o renomado Professor Mozart Borba, aborda as orientações jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça acerca do uso de medidas executivas atípicas para assegurar o cumprimento de decisões judiciais em execuções por quantia certa.

A execução por quantia certa, tradicionalmente, segue o caminho das medidas típicas previstas em lei, como penhora e adjudicação. Contudo, o Código de Processo Civil de 2015, ao prever no art. 139, IV, que o juiz pode adotar todas as medidas necessárias para assegurar o cumprimento da ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária, abriu margem para o uso de meios executivos atípicos. Essa previsão, inicialmente controversa, teve sua constitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADI 5.941, julgada em fevereiro de 2023.

No julgamento da referida Ação Direta de Inconstitucionalidade, o STF considerou válida a aplicação concreta de medidas coercitivas atípicas – como apreensão de CNH, passaporte ou proibição de participação em concursos –, desde que respeitados os princípios da proporcionalidade, razoabilidade e que não haja violação a direitos fundamentais. O relator, Ministro Luiz Fux, enfatizou que tais medidas são constitucionais, mas devem ser utilizadas dentro de certos limites.

Além do STF, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) também tem enfrentado a matéria. O julgamento do Tema Repetitivo 1.137 ainda está pendente de conclusão, mas precedentes relevantes já foram estabelecidos. No RHC 97.876/SP (4ª Turma, rel. Min. Luis Felipe Salomão), o STJ firmou entendimento no sentido de que medidas atípicas só são admissíveis após o esgotamento das vias típicas, desde que sejam proporcionais, necessárias e fundamentadas.

Outro importante precedente é o julgamento conjunto dos REsp 1.782.418/RJ e REsp 1.788.950/MT (3ª Turma, rel. Min. Nancy Andrighi), nos quais se reconheceu a admissibilidade das medidas atípicas – como apreensão de passaporte e suspensão da CNH – desde que observados requisitos como o contraditório substancial, a fundamentação adequada e a existência de indícios de patrimônio expropriável. Ressaltou-se, ainda, que tais medidas não podem ser adotadas de maneira indiscriminada.

O princípio da subsidiariedade é, portanto, fundamental para a validade dessas medidas. Antes de recorrer à atipicidade, o juiz deve verificar se os meios típicos de execução foram devidamente tentados e se mostraram ineficazes. A demonstração dessa ineficácia pode se dar inclusive por meio de execuções frustradas em outros processos contra o mesmo devedor, o que autoriza a adoção direta das medidas coercitivas excepcionais.

O respeito ao contraditório é igualmente imprescindível. A adoção de medidas atípicas exige a observância dos arts. 9º e 10 do CPC, permitindo ao devedor manifestar-se e influenciar na decisão. Essa exigência reforça a proteção contra decisões surpresa, assegurando maior legitimidade e legalidade ao processo executivo.

Ademais, a fundamentação da decisão judicial que concede medida atípica deve ir além de conceitos jurídicos vagos ou indeterminados. Como alerta o professor Marcos Minami (1), argumentos genéricos baseados apenas em dignidade da pessoa humana ou direito de ir e vir não satisfazem os requisitos do art. 489, §1º, II do CPC, sendo necessária a individualização e a justificativa concreta da medida.

Exemplos de medidas bem-sucedidas são observados na jurisprudência. Em 2023, o TJSC noticiou que um devedor quitou uma dívida de 16 anos apenas 21 dias após a apreensão de sua CNH. Tal fato ilustra a potencial eficácia dessas medidas, embora o sucesso de sua aplicação dependa sempre da análise do caso concreto.

Em síntese, a utilização de medidas executivas atípicas nas execuções por quantia certa foi legitimada pelos tribunais superiores, mas sua aplicação está condicionada a critérios rígidos. O julgador deve atuar com cautela, respeitando os direitos fundamentais do executado e observando a necessidade, subsidiariedade e proporcionalidade da medida, sempre com a devida fundamentação e após o contraditório

(1) MINAMI, Marcos Youji. Da vedação ao non factibile: uma introdução às medidas executivas atípicas. São Paulo: Ed. Juspodivm, 2019, p. 292.

*Mozart Borba é professor de Direito Processual Civil de cursos de graduação, pós-graduação e preparatórios para concursos. Membro da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo. Coordenador da Pós-Graduação de Direito Civil e Processo Civil da Faculdade 8 de Julho. Autor. Advogado.

Nossa Newsletter

Fique por dentro dos novos artigos

A investigação secreta de Porfiri Petrovich

A investigação secreta de Porfiri Petrovich

Por Anrônio Wellington

Dizem que um clássico é um romance que pode ser relido em qualquer época sem perder a atualidade. Os leitores dos séculos seguintes à edição da obra viverão conjunturas diferentes, com costumes e tendências remodelados, mas o clássico, ainda assim, dialogará com o novo público, pois a mensagem nele subjacente, além de universal, é perene.

Assim é Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski. Escrito em meados do século XIX, o livro é cada vez mais atual, e não apenas pela contribuição na descrição psicológica de uma mente criminosa. Há na trama um personagem memorável, que inicialmente surge como coadjuvante, até se transformar, ao longo do enredo, em protagonista. Refiro-me ao juiz-investigador Porfiri. A figura do juiz-investigador daquela Rússia czarista se assemelha, nos países que hodiernamente adotam o sistema investigativo inglês, ao delegado de polícia. É o caso do Brasil, por exemplo. Como instrutor da apuração, Porfiri se aproxima gradativa e cautelosamente de Raskólnikov, realizando aquilo que se reconhece como investigação criminal informal.

Raskólnikov é responsável por um duplo homicídio. Ele trucida uma anciã que o explorava financeiramente em razão de um contrato de aluguel. Após cruelmente assassinar a usurária, vê-se impelido à execução de uma parenta da idosa que aparece na casa exatamente no momento do crime. Depois dos atos brutais, cuida para eliminar provas e vestígios. Crente de que realizara os assassinatos perfeitos, espera nunca ser descoberto, enquanto vive uma profunda crise de consciência desencadeada pelo remorso.

Raskólnikov não lembrava, mas havia escrito e publicado um artigo filosófico de premissas polêmicas, que é descoberto pelo juiz-instrutor Porfiri. No texto, o futuro assassino, ainda estudante de Direito, afirma a plausibilidade do homicídio sempre que o sacrifício de algumas vidas for justificativa para a evolução civilizatória. Pautando-se nos exemplos de figuras como Napoleão Bonaparte, Raskólnikov conclui que os ícones da humanidade derramaram o sangue alheio em prol de um projeto humanitário promissor. O que distinguiria o facínora comum do estadista francês era simplesmente o fato de ser ou não neutralizado antes de galgar a fama, o sucesso e o poder.

Ao comparecer à delegacia, Raskólnikov vê em Porfiri um sujeito enigmático, com falas dúbias e olhar penetrante. Sem saber se decerto o juiz-investigador sabia a verdade sobre o horrendo acontecimento, o assassino resolve testá-lo e o procura num encontro de amigos em comum. Porfiri menciona, em tom elogioso e questionador, o artigo polêmico publicado por Raskólnikov, desconhecido do público em geral, e o delinquente enfim percebe encontrar-se envolvido num jogo de gato e rato, matizado por dissimulação e secretismo. O estado de espírito de Raskólnikov vai se deteriorando a cada encontro com Porfiri. Em determinado momento, o investigado exige do investigador que siga as formalidades litúrgicas do inquérito, intimando-o para interrogatório. Então ouve a resposta de que apuração alguma segue um padrão formal definido, pois o arguto detetive trilha o roteiro que as peculiaridades do caso sugerem. Dias seguem e, quando enfim perscruta o desespero que se apossa gradativamente do criminoso, o juiz lhe diz que sabe de tudo e solicita do homicida a confissão, em troca de benefícios legais. O transgressor vê as suas táticas de impunidade ruírem, cede à persuasão e ao remorso, comparece posteriormente à delegacia e confessa formalmente a maneira horrenda como eliminou, num ato tresloucado de fúria, duas senhoras indefesas.

Atualmente, em países democráticos, entende-se que o sigilo do inquérito é relativo. Regras como a advertência de Miranda vedam o uso de subterfúgios para a colheita de confissões de suspicazes. Confessar requer que o suspeito seja informado da condição em que é ouvido e das garantias constitucionais que lhe são outorgadas. Em sede de justiça premiada, aquele que resolve delatar um delito, pode exigir do Estado a apresentação das provas já produzidas nas diligências persecutórias. E não é só. Do conteúdo probatório coligido, tem direito ao material angariado pela polícia que conta em favor da absolvição ou da diminuição da pena abstratamente cominada. É a prerrogativa da descoberta (regra do disclosure) que faz do confessante a rainha por um dia nas mesas de negociação com o órgão acusatório (regra da queen for a day). Para confessar, confere-se ao acusado postulante de prêmio o conhecimento prévio da condição em que se encontra, a fim de que possa proceder a um juízo de custo-benefício, antes de abdicar da resistência à imputação criminal.

A investigação de Porfiri, se realizada no Brasil de hoje, teria sua licitude questionada em juízo. Porém, há uma grande lição nisso tudo. Não há formas predefinidas para a descoberta das nuances de um crime. E é por isso que o inquérito policial, por ocasião de seu momento inaugural, precisa ser secreto. Quando um delito é praticado, o transgressor começa em posição de proeminência em relação ao Estado. A relação só se inverte com a reunião de indícios de autoria contra o suspicaz. Com a inversão subsequente das forças, o indiciado se torna a parte fraca da relação, e é aí que o sigilo cede em benefício da defesa.

Ao ligar a televisão e assistir a delegados explicando com minúcias as técnicas elucidativas de crimes, noto como lhes faz falta o clássico ensinamento de Porfiri, um dos mais argutos investigadores da ficção russa.

1 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. Tradução: Oleg Almeida. São Paulo: Martin Claret, 2013, p. 452.

*Antônio Wellington é Delegado de Polícia, Mestre em Direitp, Autor de Obras Jurídicas e Professor de Direito Penal dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direito 8 de Julho.*

Nossa Newsletter

Fique por dentro dos novos artigos

Restauração e Suprimento de Assento Civil no Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais

restauração e suprimento de assento civil no cartório de registro civil de pessoas naturais

Por Gabriel Campos de Souza*

Como resolver o problema de um registro de nascimento, casamento ou óbito que tenha sido danificado ou extraviado? Qual o procedimento a ser adotado para restaurar ou suprir o registro de nascimento, casamento ou óbito? Essas e outras indagações são respondidas por Gabriel Campos de Souza, a partir do Provimento CNJ nº. 149/2023.

1. INTRODUÇÃO

A pessoa natural tem sua personalidade adquirida a partir do nascimento com vida. A existência da mesma pessoa terminará com a sua morte. O fato da vida e o fato da morte são os dois fatos essenciais da pessoa natural através dos quais se criam, transmitem, modificam ou extinguem os direitos pessoais e direitos reais.

A lei civil brasileira determina que o nascimento e a morte sejam registrados no registro público. A Lei nº. 8.935/1994, em seu art. 12, determina que os atos relacionados aos registros públicos de pessoas naturais aos oficiais de registro civis das pessoas naturais e de interdições e tutelas, observando-se as respectivas circunscrições geográficas.

Além do nascimento e da morte, a lei civil determina que os demais atos intermediários da pessoa natural também sejam registrados e/ou averbados no registro civil de pessoas naturais, tais como a emancipação, a interdição, a ausência, a morte presumida, a nulidade do casamento, a anulação do casamento, o divórcio, a separação, o restabelecimento da sociedade conjugal e os atos de declaração ou reconhecimento de filiação.

O registro civil consiste na elaboração de um texto que relate o fato ou ato ocorrido no âmbito da pessoa natural, contendo data, local, forma, as pessoas envolvidas e demais características do fato, objetivando a constituição de uma situação jurídica. A averbação consiste na elaboração de um texto que promova a alteração, retificação ou extinção de uma situação jurídica constituída através de um registo já realizado.

A anotação consiste na elaboração de um texto que promova a referência feita a um ato posterior da vida civil registrado em outro livro, ou seja, a anotação é o texto que faz remissão a um assento posterior relativo à pessoa natural referida no assento já realizado, de modo que ambos os registros tenham entre si conexão de informações porque se refiram à mesma pessoa ou pessoas. A averbação e a anotação não existem de per si, pois elas pressupõem a lavratura de um registro.

Após o registro dos fatos concernentes à pessoa natural no registro civil de pessoas naturais ou a averbação à margem do registro, é emitida a respectiva certidão do registro, contendo um resumo do registro original e do conteúdo das averbações que tenham alterado o registro.

Logo, ficam claras as distinções entre fato jurídico, registro e certidão. Fato jurídico é o acontecimento, seja natural ou humano, que causa efeitos jurídicos, ou seja, que gera, modifica, extingue ou altera direitos e deveres. Registro é a forma através da qual o ordenamento jurídico oferece o atributo da juridicidade ao fato e impõe as consequências previstas em lei àquele fato. Certidão é o documento que exprime o registro realizado.

Em suma, o nascimento é o fato; o registo do nascimento é o texto contido no livro de nascimento num cartório de registro civil de pessoas naturais e a certidão de nascimento é o documento que expressa o registro de nascimento que está contido no livro de nascimento num cartório de registro civil de pessoas naturais.
Feitas essas considerações, passemos a análise de uma situação problemática comum em todo o Brasil acerca do registro civil das pessoas.

2. O PROCEDIMENTO DO REGISTRO E SUAS INCONFORMIDADES. REGISTRO NÃO LOCALIZADO, REGISTRO INCOMPLETO E REGISTRO NÃO CONSUMADO

Como dito, o registro civil das pessoas naturais é feito a partir dos fatos da vida. Esses fatos, para serem registrados, necessitam de um declarante, que é a pessoa que declara o fato, conforme arts. 35 e 37 da Lei nº. 6.015/1973.
As partes, ou seus procuradores, bem como as testemunhas, assinarão os assentos, inserindo-se neles as declarações feitas de acordo com a lei ou ordenadas por sentença.

A escrituração dos livros é feita seguidamente, em ordem cronológica de declarações, sem abreviaturas, nem algarismos. Ao final de cada assento e antes da subscrição e das assinaturas, serão ressalvadas as emendas, entrelinhas ou outras circunstâncias que puderem ocasionar dúvidas. Entre um assento e outro, será traçada uma linha de intervalo, tendo cada um o seu número de ordem. Lavrado o assento, o livro é continuamente construído.

Ocorre que, ao longo da vida, as pessoas necessitam solicitar certidões de nascimento ou casamento ou óbito para a prática de atos da vida civil. A partir dessa necessidade, as pessoas se dirigem a um ofício de registro civil das pessoas naturais para solicitar a emissão de uma certidão atualizada.

Ao receber o pedido de emissão da certidão, o Registrador ou seus propostos farão a busca do livro onde está contido o respectivo assento. Nessa busca do assento, é possível que se depare com algumas situações, a saber:

I. Registro não localizado;
II. Registro incompleto ou não consumado.

O registro não localizado consiste na situação de I.1) inexistência do livro mencionado pela pessoa solicitante da certidão; ou I.2) existência do livro, mas inexistência da folha onde estaria o assento; ou I.3) existência do livro e da folha, porém, inexistência do assento, fatos esses que serão considerados extravio ou danificação. O extravio consiste na perda ou sumiço do livro, da folha ou do assento porque não foram localizados no arquivo do ofício de registro civil das pessoas naturais. A danificação consiste na deterioração parcial do livro, da folha ou do assento, de modo que as informações para emissão das certidões foram perdidas.

O registro incompleto é o texto que foi lavrado sem a completude dos dados exigidos pela lei de registros públicos à época de sua vigência. O registro não consumado é o texto que não foi produzido no livro, a despeito de ter sido fornecida certidão por ocasião da declaração do fato sujeito a registro.

O registro não localizado admite a restauração, uma vez que ele existia anteriormente e, seja por perda ou por deterioração, não está mais disponível para emissão da certidão.

O registro incompleto admite o suprimento parcial que consiste na elaboração de uma averbação destinada a completar (suprir) os dados que faltam.

O registro não consumado admite o suprimento total que consiste na elaboração de um novo texto para o registro, de modo a consumar a lavratura do registro que não chegou a ser feito.
As situações de registro não localizado ocorrem pelos mais diversos motivos: 1. Deterioração dos papeis pelo decurso do tempo;

2. Não transmissão completa de acervo; 3. Incêndios ou alagamentos dos espaços físicos onde são armazenados os livros.

As situações de registro incompleto ocorrem normalmente por dois motivos: 1. O declarante não tinha a informação para declarar ao Ofício Registral no momento da lavratura do assento; ou 2. O declarante tinha a informação para declarar ao Ofício Registral no momento da lavratura do assento, mas essa informação por lapso não constou no texto do registro.

As situações de registro não consumado ocorrem normalmente pela pressa das partes em obter a certidão sem aguardar a elaboração, em primeiro lugar, do termo do registro.

Ocorre que as partes somente tomarão conhecimento da situação de registro não localizado, registro incompleto ou registro não consumado quando forem solicitar certidões de nascimento ou casamento ou óbito para a prática de atos da vida civil.

Em cada caso, faz-se necessário avaliar o cabimento dos processos de restauração, suprimento ou retificação de assentamento no Registro Civil.

3. PREVISÃO LEGAL DA RESTAURAÇÃO, SUPRIMENTO OU RETIFICAÇÃO JUDICIAIS

Os processos de restauração, suprimento ou retificação de assentamento no Registro Civil estão disciplinados no art. 109 da Lei nº. 6.015/1973.

O interessado apresentará petição inicial de ação restauração, suprimento ou retificação de assentamento no Registro Civil instruída com documentos ou com indicação de testemunhas e formulará o respectivo pedido.
O juiz despachará a oitiva do Ministério Público, dos interessados no registro e do ofício de registro civil de pessoas naturais.

Se qualquer interessado ou o órgão do Ministério Público impugnar o pedido, o Juiz determinará a produção da prova, dentro do prazo de dez dias e ouvidos, sucessivamente, em três dias, os interessados e o órgão do Ministério Público, decidirá em cinco dias. Se não houver impugnação ou necessidade de mais provas, o Juiz decidirá no prazo de cinco dias.
Julgado procedente o pedido, o Juiz ordenará que se expeça mandado para que seja lavrado, restaurado e retificado o assentamento, indicando, com precisão, os fatos ou circunstâncias que devam ser retificados, e em que sentido, ou os que devam ser objeto do novo assentamento.

Se houver de ser cumprido em jurisdição diversa, o mandado será remetido, por ofício, ao Juiz sob cuja jurisdição estiver o cartório do Registro Civil e, com o seu “cumpra-se”, executar-se-á.

As retificações serão feitas à margem do registro, com as indicações necessárias, ou, quando for o caso, com a trasladação do mandado, que ficará arquivado. Se não houver espaço, far-se-á o transporte do assento, com as remissões à margem do registro original.

A despeito da previsão do processo judicial de restauração, suprimento ou retificação de assentamento no Registro Civil, a disciplina normativa do art. 109 da Lei nº. 6.015/1973 não facilita o trabalho do advogado, nem das próprias partes, em obter a regularização do seu registro civil.

4. RESTAURAÇÃO, SUPRIMENTO OU RETIFICAÇÃO DIRETAMENTE PERANTE O REGISTRO CIVIL DE PESSOAS NATURAIS
4.1. FUNDAMENTAÇÃO

Sem adentrar profundamente ao tema da extrajudicialização, que é uma das faces da desjudicialização, o Provimento CNJ n. 177 de 15.8.2024 alterou o Provimento CNJ n. 149/2023 para incluir a Seção II – Da Restauração e Suprimento diretamente perante o Registro Civil de Pessoas Naturais no Capítulo I – DO PROCEDIMENTO do TÍTULO III – DO EXTRAVIO OU DANIFICAÇÃO DO ACERVO.

O art. 205-A do Provimento CNJ n. 149/2023 passou a autorizar a restauração e ao suprimento de atos e livros no Registro Civil das Pessoas Naturais.

Segundo art. 205-C do Provimento CNJ n. 149/2023, poderá ser objeto de restauração administrativa, independentemente de autorização do juiz corregedor permanente, qualquer ato lançado nos livros do Registro Civil das Pessoas Naturais, quando constatados o extravio ou a danificação total ou parcial da folha do livro, desde que haja prova documental suficiente e inequívoca para a restauração, ressalvada a hipótese de o objeto ser assento de óbito (art. 205-F).

A regra fundamental para a restauração ou suprimento administrativos diretamente perante o Registro Civil das Pessoas Naturais é a prova documental suficiente e inequívoca para a restauração ou suprimento.

4.2. LEGITIMIDADE

A legitimidade para o requerimento de instauração de Procedimento de Restauração ou Suprimento Administrativo será: 1. PRÓPRIO OFICIAL, nos casos em que a restauração possa ser realizada a partir do acervo; 2. DO PRÓPRIO REGISTRADO; 3. REPRESENTANTE LEGAL DO REGISTRADO; 4. PROCURADOR DO REGISTRADO com poderes específicos; 5. CÔNJUGE OU COMPANHEIRO DO REGISTRADO; 6. PARENTESCO NA LINHA RETA – pai, mãe, avô, avó, neto, neta, et; 7. PARENTESCO NA LINHA COLATERAL ATÉ O QUARTO GRAU – TIO E PRIMO.

No caso de restauração de óbito, tem legitimidade pessoa que demonstre legítimo interesse comprovado documentalmente.

4.3. FORMA DO REQUERIMENTO E INSTRUÇÃO

Conforme art. 205-D, §2, Provimento CNJ 149/2023, a forma do requerimento de instauração de Procedimento de Restauração ou Suprimento Administrativo será: 1. Requerimento escrito com firma reconhecida; 2. Requerimento com firma lançada na presença do Registrador ou preposto; 3. Requerimento eletrônico perante o sistema eletrônico mantido pelo ONRCPN (Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico das Pessoas Naturais); 4. Requerimento verbal com redução a termo.

Na forma do art. 205-F, § único, e Art. 205-D, §3, do Provimento CNJ n. 149/2023, as provas do requerimento de instauração de Procedimento de Restauração ou Suprimento Administrativo serão: 1.  documentos oficiais emitidos por autoridade pública; 2. documentos gerados com base no ato objeto da restauração; 3. RG; identidade profissional; CNH; Título de eleitor; certificado de reservista; 4. 1ª ou demais vias de certidão do ato a ser suprido; 5. justificativa da inviabilidade de apresentar outras provas inequívocas; 6. Certidão de óbito e declaração de óbito (essenciais para a restauração ou suprimento do óbito).

4.4. PROCESSAMENTO

O protocolo inicial será feito por qualquer ofício de Registro Civil de Pessoas Naturais do país que transmitirá ao ofício de Registro Civil de Pessoas Naturais titular do registro a ser restaurado ou suprido.
A análise do cabimento de emolumentos deverá ser feita na forma do art. 205-B, parágrafo único, do Provimento CNJ 149/2023.

O ofício de registro civil das pessoas naturais fará a qualificação do requerimento. Havendo exigências, emitirá nota de qualificação registral e dará ciência ao apresentante para complementar o requerimento, conforme prescreve o art. 205-E, §1º, Provimento CNJ n. 149/2023.

Estando devidamente instruído, o ofício de registro civil das pessoas naturais fará o exame do seu acervo para verificar se há no livro, termo e folhas indicados a falta apontada no requerimento, conforme determina o Art. 205-K, §1º, do Provimento CNJ n. 149/2023.

Em caso de extravio de folhas de livro, o ofício de registro civil das pessoas naturais deverá consultar a Central Nacional do Registro Civil acerca de eventual sobre duplicidade de registro, conforme art. 205-E, §4º, Provimento CNJ n. 149/2023.

Caso o objeto da restauração administrativa seja assento de óbito, o ofício de registro civil das pessoas naturais encaminhará expediente administrativo ao Juízo da Vara de Registros Públicos da Comarca solicitando autorização para restauração administrativa do assento de óbito. Com a autorização do Juízo da Vara de Registros Públicos da Comarca os atos necessários ao suprimento ou restauração serão feitos.

Caso o objeto da restauração ou suprimento administrativos seja qualquer assento ou averbação ou anotação que não seja o de óbito, e caso o requerimento esteja apto ao deferimento, o ofício de registro civil das pessoas naturais emitirá Nota de Qualificação Registral Positiva na forma do art. 205-E, inciso I, Provimento CNJ n. 149/2023 e fará os atos necessários ao suprimento ou restauração.

Caso o objeto da restauração ou suprimento administrativos seja qualquer assento ou averbação ou anotação que não seja o de óbito, e caso o requerimento não esteja apto ao deferimento, o ofício de registro civil das pessoas naturais emitirá Nota de Qualificação Registral Negativa na forma do art. 205-E, inciso II, Provimento CNJ n. 149/2023, dando ciência ao Solicitante que poderá requerer a suscitação de dúvida ao Juízo da Vara de Registros Públicos da Comarca.

A dúvida será levantada pelo ofício de registro civil das pessoas naturais e encaminhada ao Juízo da Vara de Registros Públicos da Comarca. Caso seja procedente, os atos necessários ao suprimento ou restauração serão feitos. Caso seja improcedente, o Solicitante poderá interpor recurso de apelação ao Conselho da Magistratura do respectivo Tribunal de Justiça. Com o julgamento procedente da apelação, os atos necessários ao suprimento ou restauração serão feitos.

4.5. ATOS NECESSÁRIOS AO SUPRIMENTO OU RESTAURAÇÃO

A restauração será feita através da lavratura do termo do registro no livro que está em uso no ofício de registro civil das pessoas naturais. É aberta nova folha no livro para lavratura do novo registro, aplicando-se o art. 205-H, §2º, Provimento CNJ n. 149/2023.

O parágrafo primeiro do art. 205-H do Provimento CNJ n. 149/2023 traz a previsão de que: “Quando possível, o assento restaurado, embora seja lançado no livro corrente, deve possuir o mesmo número de ordem do registro original e o mesmo número de matrícula, em razão da unicidade e imutabilidade do número de matrícula.”
Há um problema no cumprimento desse dispositivo. 

A matrícula do registro civil, de inserção obrigatória nas certidões (primeira e demais vias) emitidas pelos Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais, é formada pelos seguintes elementos (Art. 473 do Provimento CNJ n. 149/2023): I – Código Nacional da Serventia (6 primeiros números da matrícula); II – Código do acervo (7º e 8º números da matrícula), servindo o número 01 para acervo próprio e demais números para os acervos incorporados; III – Código 55 (9º e 10º números da matrícula), que é o número relativo ao serviço de registro civil das pessoas naturais; IV – Ano do registro do qual se extrai a certidão, com 4 dígitos (11º, 12º, 13º e 14º números da matrícula); V – Tipo do livro de registro, com um digito numérico (15º número da matrícula), sendo: 1: Livro A (Nascimento) 2:Livro B (Casamento) 3: Livro B Auxiliar (Casamento Religioso com efeito civil) 4: Livro C (Óbito) 5: Livro C Auxiliar (Natimorto) 6: Livro D (Registro de Proclamas) 7: Livro E (Demais atos relativos ao registro civil); VI – Número do livro, com cinco dígitos (exemplo: 00234), os quais corresponderão ao 16º, 17º, 18º, 19º e 20ºnúmeros da matrícula; VII – Número da folha do registro, com três dígitos (21º, 22º e 23º números da matrícula); VIII – Número do termo na respectiva folha em que foi iniciado, com sete dígitos (exemplo 0000053), os quais corresponderão aos 24º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º números da matrícula; IX – Número do dígito verificador (31º e 32º números da matrícula).

Dispõe o parágrafo primeiro do art. 473 do Provimento CNJ n. 149/2023 que: “§ 1.º As numerações deverão ser contínuas para cada especialidade e não poderá existir números de matrículas diferentes para o mesmo ato, razão pela qual, na hipótese de serventias incorporadas que tenham que expedir certidões relativas a registros lavrados em CNS já extintos, deve ser utilizado o CNS da serventia incorporada como dígito 01, referente a acervo próprio.”

Ora, observa-se uma antinomia entre o parágrafo primeiro do art. 473 do Provimento CNJ n. 149/2023 que estabelece que não poderá existir números de matrículas diferentes para o mesmo ato e o parágrafo primeiro do art. 205-H do Provimento CNJ n. 149/2023 que prevê que: “Quando possível, o assento restaurado, embora seja lançado no livro corrente, deve possuir o mesmo número de ordem do registro original e o mesmo número de matrícula.

Sendo lançado no livro corrente, o registro restaurado terá número de livro, folha e termo no registro corrente.

Como é que deverá ter o mesmo número de ordem do registro original e o mesmo número de matrícula, se o parágrafo primeiro do art. 473 do Provimento CNJ n. 149/2023 dispõe que não poderá existir números de matrículas diferentes para o mesmo ato?

Ademais, a coexistência de dois números de matrícula no mesmo termo de registro promoverá confusão, pois, com qual número de matrícula deverá ser expedida a certidão?

Qual número de matrícula civil será utilizado pelos órgãos que expedem o documento de identidade?

Qual o número de matrícula civil que será utilizado pelo demais órgãos ( Receita Federal, INSS, Tribunal Superior Eleitoral, etc.)?

Dito isso, parece-nos melhor aplicar o parágrafo primeiro do art. 473 do Provimento CNJ n. 149/2023 combinado com o parágrafo segundo do art. 205-H do Provimento CNJ n. 149/2023, cuja previsão é a seguinte: “§ 2º Quando não for possível o aproveitamento da numeração na forma do § 1º deste artigo, deverá constar na certidão, no campo observação, a menção de que se trata de restauração administrativa, com menção dos dados do registro originário (livro, folha e termo), se houver.”

O melhor então é: 1. abrir nova folha no livro corrente; 2. Lavrar a restauração como novo registro ou realizar a averbação de suprimento total ou parcial à margem do registro; 3. Inserir a matrícula nova que é gerada automaticamente pelos sistemas informatizados; 4. Mencionar no campo observação: “O presente termo foi lavrado a partir de restauração administrativa objeto do Protocolo nº. X/ ANO, com menção dos dados do registro originário (livro , folha e termo)”.

Se o livro original permitir, deve ser feita a anotação de remissão no livro original, tanto no índice do livro, quanto na folha se for possível, com base no art. 205-H do Provimento CNJ n. 149/2023.

4.6. CUMULAÇÃO COM RETIFICAÇÃO

O art. 205-G, Provimento CNJ n. 149/2023 autoriza que seja feito pedido de restauração ou suprimento cumulado com pedido de retificação de algum elemento equivocado que esteja na certidão.

Do mesmo modo que o suprimento e a restauração, o pedido de retificação deve ter prova documental suficiente para seu deferimento, aplicando-se, para tanto, o art. 110 da Lei nº. 6.015/1.973.

Seguindo o princípio de que o acessório segue o principal e de que o ato de averbação somente é praticado à margem de um ato de registro, os atos de averbação de retificação somente serão praticados após realizada a restauração do registro. 

5. CONCLUSÃO
Diante do exposto, a possibilidade de restauração e o suprimento de atos e livros diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais trazida pelo Provimento CNJ n. 177 de 15.8.2024 permitirá a melhor regularização dos registros civis das pessoas, na medida em que as orientações dadas pelos Ofícios do Registro Civil das Pessoas Naturais fornecerão condições dos interessados obter mais facilmente os documentos necessários para a restauração dos registros não localizados e o suprimento dos registros incompletos ou não consumados.

* Gabriel Campos de Souza é Registrador. Especialista em Direito Imobiliário e Especialista em Direito Processual Civil. Professor de Direito Notarial, Registral e Imobiliário da Faculdade de Direito 08 de Julho. Presidente da Associação dos Notários e Registradores do Estado de Sergipe. Membro do Conselho Deliberativo do Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis. Membro do Conselho Deliberativo do Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Pessoas Naturais. Membro do Comitê de Normas Técnicas do Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis.

Nossa Newsletter

Fique por dentro dos novos artigos

Justiça e Democracia: o Necessário Caminho da Responsabilização

Justiça e Democracia: o Necessário Caminho da Responsabilização

Por Maurício Gentil*

O recebimento da denúncia em face do ex-Presidente Jair Bolsonaro pelos atos do dia 8 de janeiro de 2023, constituiu-se em um marco histórico e jurídico na defesa da democracia. Nesse ensaio, Maurício Gentil defende que crimes contra a ordem democrática não devem ser anistiados, em nome da verdade, da justiça e da memória histórica.

O Supremo Tribunal Federal recebeu denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República contra o ex-presidente da República Jair Bolsonaro e diversas outras ex-autoridades civis e militares, por envolvimento em um articulado plano de ruptura institucional, cuja culminância se deu na tentativa de golpe de Estado e na violenta invasão das sedes dos três Poderes da República, no dia 8 de janeiro de 2023.

Esse recebimento da denúncia, após cuidadosa análise prévia de sua admissibilidade, representa mais do que um ato processual: constitui passo fundamental na afirmação do Estado Democrático de Direito, pois sinaliza que, em uma democracia constitucional, ninguém está isento de responsabilidade por atos golpistas contra a própria democracia.

A história recente do Brasil nos ensina o quanto pode custar caro a opção pelo esquecimento e pela impunidade. A transição da ditadura militar para a democracia, embora tenha permitido a reconquista das liberdades públicas, foi marcada por uma conciliação que impediu a responsabilização de agentes estatais que cometeram crimes hediondos contra opositores políticos. Sob a justificativa de que seria necessário um “acordo de pacificação nacional”, a Lei da Anistia de 1979 foi interpretada, em decisão lamentavelmente ainda prevalente no Supremo Tribunal Federal (ADPF 153), como abrangente também para os crimes comuns praticados por agentes da repressão — incluindo tortura, homicídios e desaparecimentos forçados.

Tal entendimento comprometeu a efetivação da chamada justiça de transição, que, conforme o direito internacional e a experiência comparada de outras nações que viveram períodos autoritários, exige a apuração, o julgamento e as devidas responsabilizações por graves violações de direitos humanos, além da garantia de memória e verdade, para que jamais se repitam tais episódios.

Hoje, o Brasil vive uma nova encruzilhada. A tentativa de golpe de Estado, articulada por altas autoridades do governo anterior, inclusive com o apoio ou conivência de setores das Forças Armadas, não pode ser relativizada ou esquecida. O episódio do 8 de janeiro não foi um ato isolado de vandalismo, mas o desfecho de uma escalada autoritária, sustentada por ataques sistemáticos às instituições, difusão de desinformação, deslegitimação do processo eleitoral e incentivo à ruptura democrática.

Diante da gravidade dos fatos e da robustez das provas apresentadas, o recebimento da denúncia pelo STF inaugura uma nova etapa na defesa da ordem constitucional: o julgamento daqueles que, valendo-se da autoridade pública e do aparato estatal, atentaram contra os fundamentos da República.

Esse processo judicial precisa ser conduzido com absoluto respeito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, valores que não foram respeitados nos tempos sombrios da ditadura — e que distinguem a justiça democrática da violência autoritária. Mas é imperativo que não se ceda, novamente, à tentação do esquecimento travestido de conciliação. Crimes contra a democracia, sobretudo quando cometidos por quem deveria protegê-la, são incompatíveis com qualquer forma de anistia.

A abertura desses processos é, pois, um sinal de maturidade institucional e um compromisso com as gerações futuras. Como bem demonstrado nos debates mais recentes no STF — inclusive com a reabertura da discussão sobre a extensão da Lei da Anistia e a análise de recursos sobre a responsabilização de crimes cometidos na ditadura — há um movimento de revisão crítica da história que pode, enfim, consolidar uma cultura jurídica e política fundada na responsabilização e na memória.

É tempo de aprender com os erros do passado e reafirmar, com coragem cívica, que democracia não se negocia. Justiça não se adia. E que, para que nunca mais se esqueça e nunca mais aconteça, é preciso, hoje e sempre, que haja verdade, justiça e, se for o caso, punição, na exata medida e proporção das respectivas e individualizadas responsabilidades, sem anistia.

* Maurício Gentil é Advogado, Mestre e Doutor em Direito e Professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito 8 de Julho.

Nossa Newsletter

Fique por dentro dos novos artigos

Liberdade de expressão, fake news e o discurso de ódio

Liberdade de expressão, fake news e o discurso de ódio

Por Evânio Moura*

Quais os limites da liberdade de expressão? Qual a importância do combate às fake News? Essas e outras indagações são respondidas por Evânio Moura, a partir de uma abordagem constitucional.

Ao tomar conhecimento da prisão, do suplício e da execução na roda das tormentas de Jean Calas, acusado falsamente de ter matado o próprio filho em Toulouse, apenas pelo fato de ser protestante e não professar o catolicismo, o grande filósofo Voltaire escreveu uma obra lapidar em defesa da liberdade de pensamento e de crença, batizando-a de “Tratado sobre a Tolerância”. Nascia em 1763 o primeiro documento defendendo a liberdade de pensar e expressar publicamente seus posicionamentos.

Posteriormente diversos outros iluministas passaram a sustentar que a liberdade de pensamento e expressão compõem o rol de direitos naturais do homem, sendo positivados na Declaração dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos (1789), que afirma: “a livre manifestação dos pensamentos e opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, sob condição de responder pelo abuso dessa liberdade nos casos determinados pela lei”.

Na história evolutiva das democracias pode-se assegurar que quanto mais democrático um governo, mais arejada sua Constituição e mais livre uma nação, maior será a liberdade de pensamento e de expressão e o pluralismo de ideias.
A nossa Constituição Federal de 1988 expressamente assegura a livre manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato (art. 5º, IV), a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, IX), a liberdade de cátedra (art. 206, II) e a liberdade de informação jornalística (art. 220).

A liberdade de expressão nunca foi e nem pode ser absoluta, encontrando limites claros no próprio texto constitucional, devendo-se impedir o uso de manifestações lançadas no intuito de ofender à honra, imagem e intimidade das pessoas, estimular a prática de crimes, agredir a integridade física ou disseminar discursos de ódio.
A questão ganha especial atenção e atualidade com a sociedade da hiperconexão. Vivemos uma rápida transição passando do homo sapiens (que sempre buscou o conhecimento, respeitando a ciência e valorizando as artes)para o homo zappiens (cidadão virtual, que sabe zapear e utilizar várias tecnologias digitais ao mesmo tempo, mantendo forte interação nas redes sociais).

Esse fenômeno foi potencializado no Brasil com a rápida integração da população que, munida de um smartphone, passa a ser usuário de várias redes sociais ao mesmo tempo (Facebook, Twitter, Instagram, Telegram, TikTok, dentre outras), sendo que quase todos os usuários se posicionam sobre vários assuntos, sempre apresentando “aquela velha opinião formada sobre tudo”.

Em um contexto de polarização política como o que vivenciamos nos últimos anos, intensificou-se o acirramento no uso das redes sociais e a liberdade de expressão passou a ser usada como escudo legitimador de uma suposta “liberdade de agressão”, sendo difundidas inúmeras informações falsas, criminosas e ofensivas, tudo com a complacência das famosas big techs (maiores empresas de tecnologia do mundo).

Esses grandes conglomerados com base em uma suposta proteção de dados e observância de termos de uso deixam de cumprir ordens judiciais, passam a desrespeitar as autoridades constituídas e mesmo diante de postagens levianas, preconceituosas e mentirosas, mantém no ar referidas ofensas. A grande questão a ser enfrentada é a seguinte: a liberdade de expressão respalda referida situação?

FAKE NEWS

Nesse contexto surge a necessidade, ainda, do combate as fake News (que possuem um poder devastador e podem matar) como no caso das inúmeras mentiras lançadas no auge da pandemia do Covid-19 sobre a eficácia da vacina e utilidade de determinados medicamentos ou ainda, notícias falsas que atentam contra a democracia (como a divulgação em pleno período eleitoral de que as urnas eletrônicas mantidas pelo TSE são objetos de fraude, mesmo sem a apresentação de qualquer prova).Existe liberdade de expressão que justifique a divulgação de mentiras?

E ainda: pode-se em nome da liberdade de expressão permitir a existência de grupos ou células que disseminam discurso de ódio nas redes sociais, ofendendo minorias com postagens de conteúdo nazista, racista, misógino, homofóbico e absolutamente preconceituoso?

Evidente que não, eis a resposta possível e cabível, sendo que referidas posturas merecem ser prontamente reprovadas, responsabilizadas e reprimidas. Combater a desinformação, a apologia ao crime e o preconceito não é censura. A livre manifestação do pensamento não alberga direito de produzir e difundir fake News, de caluniar, injuriar, difamar, ameaçar e, muito menos, de atentar contra a própria liberdade de expressão, contra a democracia ou contra o Estado Democrático de Direito.

REGULAMENTAÇÃO LEGISLATIVA

Diante da necessidade de regulamentar a matéria, passou o parlamento brasileiro desde o ano de 2020 a debater o tema, sendo aprovado no Senado Federal o PL 2630/2020, atualmente em discussão na Câmara dos Deputados. Referido desenho de lei foi rapidamente apelidado por alguns grupos de “PL da Censura”.

Ao observar quem são os políticos contrários à aprovação de referido Projeto de Lei (a exemplo do ex-presidente da República e vários deputados federais e senadores que já foram condenados por propagarem notícias falsas), todos apoiados nesta batalha pelas big techs que não desejam regulamentação, não esperam prestar contas, não querem perder engajamento e lucros gerados por este novo modelo econômico ligados a um capitalismo tecnoglobal, concluo que o PL deve ser aperfeiçoado e aprovado, não vislumbrando em referido projeto lei qualquer tentativa de imposição de censura.

Infelizmente existe um longo apelo para a propagação de mentiras, escândalos, debates rasos, ofensas, teorias da conspiração e discursos de ódio, gerando engajamento nas redes, sendo que quanto maior o número de likes, tempo de conexão e exposição de uma “notícia”, maior o lucro dessas empresas que não se importam com liberdade de expressão ou com a verdade, estão mesmo preocupadas em aumentar seus ganhos, escravizando uma geração que não consegue viver afastada das telas e têm nas redes sociais a principal fonte de informação (ou desinformação).
A internet não pode ser uma terra de ninguém, sem lei e sem consequências para aqueles que difundem mentiras, ofendem e disseminam o ódio, provocam danos à sociedade e atentam contra a democracia.

O que é crime fora das redes, deve ser crime nas redes sociais. Os inimigos da regulamentação almejam em nome de uma pseudoliberdade de expressão continuarem impunemente disseminando a mentira e ofendendo minorias sem sofrer as consequências jurídicas por esta conduta.

Acaso Voltaire estivesse vivo em nosso meio, a quem atribuem a célebre frase “Posso não concordar com uma única palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizê-la”, que em verdade é de autoria de sua biógrafa Evelyn Beatrice Hall, defenderia o intransigente respeito à liberdade de expressão dentro de um contexto em que impera à verdade e o respeito às minorias, combatendo fake news e os discursos de ódio, protegendo a democracia e o Estado de Direito.

* Evânio Moura é Doutor em Direito Penal e Mestre em Processo Penal pela PUC-SP. Professor de Direito Penal da Faculdade de Direito 08 de Julho. Advogado. Procurador do Estado de Sergipe.

Nossa Newsletter

Fique por dentro dos novos artigos