A investigação secreta de Porfiri Petrovich

Por Anrônio Wellington

Dizem que um clássico é um romance que pode ser relido em qualquer época sem perder a atualidade. Os leitores dos séculos seguintes à edição da obra viverão conjunturas diferentes, com costumes e tendências remodelados, mas o clássico, ainda assim, dialogará com o novo público, pois a mensagem nele subjacente, além de universal, é perene.

Assim é Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski. Escrito em meados do século XIX, o livro é cada vez mais atual, e não apenas pela contribuição na descrição psicológica de uma mente criminosa. Há na trama um personagem memorável, que inicialmente surge como coadjuvante, até se transformar, ao longo do enredo, em protagonista. Refiro-me ao juiz-investigador Porfiri. A figura do juiz-investigador daquela Rússia czarista se assemelha, nos países que hodiernamente adotam o sistema investigativo inglês, ao delegado de polícia. É o caso do Brasil, por exemplo. Como instrutor da apuração, Porfiri se aproxima gradativa e cautelosamente de Raskólnikov, realizando aquilo que se reconhece como investigação criminal informal.

Raskólnikov é responsável por um duplo homicídio. Ele trucida uma anciã que o explorava financeiramente em razão de um contrato de aluguel. Após cruelmente assassinar a usurária, vê-se impelido à execução de uma parenta da idosa que aparece na casa exatamente no momento do crime. Depois dos atos brutais, cuida para eliminar provas e vestígios. Crente de que realizara os assassinatos perfeitos, espera nunca ser descoberto, enquanto vive uma profunda crise de consciência desencadeada pelo remorso.

Raskólnikov não lembrava, mas havia escrito e publicado um artigo filosófico de premissas polêmicas, que é descoberto pelo juiz-instrutor Porfiri. No texto, o futuro assassino, ainda estudante de Direito, afirma a plausibilidade do homicídio sempre que o sacrifício de algumas vidas for justificativa para a evolução civilizatória. Pautando-se nos exemplos de figuras como Napoleão Bonaparte, Raskólnikov conclui que os ícones da humanidade derramaram o sangue alheio em prol de um projeto humanitário promissor. O que distinguiria o facínora comum do estadista francês era simplesmente o fato de ser ou não neutralizado antes de galgar a fama, o sucesso e o poder.

Ao comparecer à delegacia, Raskólnikov vê em Porfiri um sujeito enigmático, com falas dúbias e olhar penetrante. Sem saber se decerto o juiz-investigador sabia a verdade sobre o horrendo acontecimento, o assassino resolve testá-lo e o procura num encontro de amigos em comum. Porfiri menciona, em tom elogioso e questionador, o artigo polêmico publicado por Raskólnikov, desconhecido do público em geral, e o delinquente enfim percebe encontrar-se envolvido num jogo de gato e rato, matizado por dissimulação e secretismo. O estado de espírito de Raskólnikov vai se deteriorando a cada encontro com Porfiri. Em determinado momento, o investigado exige do investigador que siga as formalidades litúrgicas do inquérito, intimando-o para interrogatório. Então ouve a resposta de que apuração alguma segue um padrão formal definido, pois o arguto detetive trilha o roteiro que as peculiaridades do caso sugerem. Dias seguem e, quando enfim perscruta o desespero que se apossa gradativamente do criminoso, o juiz lhe diz que sabe de tudo e solicita do homicida a confissão, em troca de benefícios legais. O transgressor vê as suas táticas de impunidade ruírem, cede à persuasão e ao remorso, comparece posteriormente à delegacia e confessa formalmente a maneira horrenda como eliminou, num ato tresloucado de fúria, duas senhoras indefesas.

Atualmente, em países democráticos, entende-se que o sigilo do inquérito é relativo. Regras como a advertência de Miranda vedam o uso de subterfúgios para a colheita de confissões de suspicazes. Confessar requer que o suspeito seja informado da condição em que é ouvido e das garantias constitucionais que lhe são outorgadas. Em sede de justiça premiada, aquele que resolve delatar um delito, pode exigir do Estado a apresentação das provas já produzidas nas diligências persecutórias. E não é só. Do conteúdo probatório coligido, tem direito ao material angariado pela polícia que conta em favor da absolvição ou da diminuição da pena abstratamente cominada. É a prerrogativa da descoberta (regra do disclosure) que faz do confessante a rainha por um dia nas mesas de negociação com o órgão acusatório (regra da queen for a day). Para confessar, confere-se ao acusado postulante de prêmio o conhecimento prévio da condição em que se encontra, a fim de que possa proceder a um juízo de custo-benefício, antes de abdicar da resistência à imputação criminal.

A investigação de Porfiri, se realizada no Brasil de hoje, teria sua licitude questionada em juízo. Porém, há uma grande lição nisso tudo. Não há formas predefinidas para a descoberta das nuances de um crime. E é por isso que o inquérito policial, por ocasião de seu momento inaugural, precisa ser secreto. Quando um delito é praticado, o transgressor começa em posição de proeminência em relação ao Estado. A relação só se inverte com a reunião de indícios de autoria contra o suspicaz. Com a inversão subsequente das forças, o indiciado se torna a parte fraca da relação, e é aí que o sigilo cede em benefício da defesa.

Ao ligar a televisão e assistir a delegados explicando com minúcias as técnicas elucidativas de crimes, noto como lhes faz falta o clássico ensinamento de Porfiri, um dos mais argutos investigadores da ficção russa.

1 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. Tradução: Oleg Almeida. São Paulo: Martin Claret, 2013, p. 452.

*Antônio Wellington é Delegado de Polícia, Mestre em Direitp, Autor de Obras Jurídicas e Professor de Direito Penal dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direito 8 de Julho.*

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